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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014


  Jorge e eu nos trocamos e fomos à casa de Tamara. Quando chegamos, Jonas e Ana já estavam nos esperando. Não dizemos nada, apenas nos olhamos e todos se abraçaram. Um membro de nosso inquebrável círculo nos deixava. Um quarteto de sobreviventes.
  Sugerira que fossemos ao quarto de Tamara, mas Ana interviera. A mãe de Tamara pedira que não entrássemos lá.
Ficamos parados lado a lado por muito tempo. O corpo fora levado há horas. As pessoas presentes começavam a se dispersar. A maioria com rosários nas mãos, todos direcionados ao memorial onde o corpo seria velado.

  A casa ficando quase vazia fora sozinho ao quarto onde Tamara fora encontrada. Ao abrir a porta, um forte cheiro invadira minhas narinas. Um cheiro que misturava uísque e vômito. Roupas, cacos de vidro e livros espalhados pelo chão. Sobre a cama, um edredom sujo de vômito amarrotado. O travesseiro também muito sujo continuava em seu lugar de costume. Uma garrafa de vidro jazera no chão ao lado da cama. Quando me aproximara, reparara em duas cartelas vazias que conseguira identificar serem de Clonazepam.
Tamara cometera suicídio durante a madrugada e não deixara nada além de uma fétida lembrança em minha mente.
  Fomos ao memorial e o corpo chegara após um tempo. Perfeito. Seu rosto artificialmente rosado como de uma boneca de porcelana. Permanecemos ao seu lado por toda tarde, presenciando idas e vindas chorosas.
Quando contara aos três o que encontrara no quarto naquela manhã, Ana tivera uma crise de choro, então a levamos à sua casa.
  Quando chegamos, Jorge e eu esperamos que Jonas entrasse e cuidasse dela. Após um tempo ele voltara dizendo que finalmente Ana dormira.
Ana era a que mais perto morava de mim. Apenas duas quadras subindo a rua. Despedira-me dos dois e descera a rua lembrando-me do cenário presenciado. Uma terrível sensação de solidão tomara conta de mim.
  Quando chegara a minha casa, a escuridão predominava. Acendera algumas luzes e logo encarava uma mesinha de centro próxima à parede. Ainda pudera sentir a presença de meus amigos apavorados. O copo rachado à luz de velas.
Sentara-me pensativo no sofá. Não conseguia imaginar o que levara Tamara a fazer o que fizera. O susto causara isso? Tamara parecia em choque. Paralisada. Ela não era covarde. Não fazia sentido.
  A noite anterior começava a surgir em minha mente. O copo fazia afirmações. Seus movimentos nos apresentaram um homem que fora assassinado aos trinta e sete anos de idade.
Já ouvi falar que pessoas assassinadas brutalmente viravam espíritos vingativos, mas não tínhamos nenhuma certeza sobre esse. A única coisa que imaginava era que Tamara simplesmente se precavera. Uma medida desesperada antes que algo pior acontecesse.
A essa altura da noite, o ar gélido invadia meus pulmões congelando-me por dentro. No banheiro, chorara em frente ao espelho. Um pânico tomara conta de mim. Ouvira murmúrios. As juntas dos dedos estalando. Fechei os olhos e me vira encostado no canto do banheiro com os pulsos vazando sangue. Abrira os olhos e enxergara um reflexo cansado e inchado pelo choro. Meus olhos esbranquiçados. Socara o espelho. O reflexo se despedaçara. Minha mão ardia. Eu já não controlava meus atos. Abaixando, segurara um caco caído ao chão. Apertara-o com força. Sangue escorria da minha mão. Encostara-o em meu pulso e pressionara-o. Uma voz invadira minha mente e um empurrão me fizera tombar.
  Foi como o despertar de um pesadelo. Não sabia o que me fizera cometer aquilo. Jorge gritava e me puxava. Chacoalhava-me. Não podia explicar.
  Após tirar-me dos cacos, levara-me para a cama e ficara ao meu lado até eu dormir.
Horas depois, seu celular me fizera despertar. Não entendia o que ele dizia, apenas identificara o nome de Jonas. Levantara-me da cama e fora à sala onde o encontrara virado de costas. Algo ruim acontecera. Quando sentira minha presença, virara-se e uma única palavra desmoronara meu mundo mais um pouco: Ana.

Continua...

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